domingo, 4 de novembro de 2007

O Joãozinho morreu

Quando o despertador tocou já estava morto! Aconteceu pela manhã. Nunca esperou ir desta forma e muito menos nesta altura do ano. No Natal, quanto muito morre-se na estrada, a contrariar os números a uma qualquer operação da GNR, não numa cama na mesma posição de quem apanha banhos de sol nas Caraíbas, com o senão do tecto não prover melhor vista que as beldades que por lá se passeiam.
Não se lembra de ter tirado nenhuma senha para outra vida! Não fez nenhum teste nem se candidatou a nada parecido! Terão acabado os voluntários e agora têm que vir buscar candidatos à força?
Não gostou e interroga-se se isto da morte não terá livro de reclamações?
Outra dúvida. Quem decide estas coisas não deveria estar de férias ou a adorar o menino nas palhas deitado e a agradecer os presentes do Sr. de barba branca que não percebe que se a pintasse de preto ficaria com menos 30 anos?

Sempre achou que quando chegasse a sua hora, teria tempo de se despedir dos amigos, da família. Nunca pensou que a morte lhe entrasse pela casa, sem pedir licença e lhe levasse a vida sem tão pouco mostrar um mandato de captura.
Tivesse direito a julgamento, e provaria que a coisa foi feita com base numa acção ilegal.
Segunda dúvida. Um morto tem direito a advogado?
Que teria a vida dele feito de tão grave para que a levassem! Nem ele sabe e esteve com ela desde sempre. Fora daquela vez que caiu nos escuteiros e ficou inconsciente, mas até isso foi tão célere que não lhe deu tempo para nada!
Se acontecesse o mês passado até que nem se importava. Não tinha nenhum plano em especial, mas agora uma morte não vinha nada a calhar. Já pagou a viagem de fim de ano. Gastou uma data de dinheiro nas prendas e assim nunca saberá se lhe iam oferecer o DVD portátil.
Até já encheu o depósito para ir passar o natal à Terra, ao preço que está a Gasolina, até isso arrelia um morto!

Já para não falar de toda a comida que se ia desperdiçar! Se calhar não, nos funerais aparece sempre gente para comer. É a parte em que se aproveita para elogiar o defunto e onde há sempre alguém a dizer uma data de frases feitas sobre a vida e o que ela nos reserva.
- Pois é! Nunca sabemos para o que estamos guardados!
- Nesta vida, não valemos nada!
Se se lembrar, proíbe este tipo de exclamações no seu funeral!
Pode uma pessoa estar morta, sem se lembrar de ter morrido? Não deveria haver uma relação, causa efeito?
Isso levar-nos-ia para outra ainda maior. Não existindo, pode um morto ter uma dúvida existencial?
Ainda anteontem no elevador, pensou assediar a vizinha do quinto esquerdo depois de ela o ter olhado de soslaio. No momento achou que a seu tempo teria oportunidades para adultérios e crises de meia-idade, afinal não!

Que estranho prazer tem quem programa a morte, em levar um indivíduo arrependido de não ter assediado uma vizinha do quinto esquerdo que até o olhou de soslaio?
Custava muito avisar? Não precisava ser uma super produção com uma luz forte e uma voz em sistema
«Surround» ao nível dos milagres de Fátima! Podia ser uma coisa menor, de baixo orçamento. Há-de haver planos para coisas dessas. Tem que haver! Uma coisa simples. Só uma voz gritando no fundo da alma.
- Come-a! Come-a hoje ou nunca mais terás oportunidade!
Mas tinha que ser uma coisa credível, para um indivíduo não pensar que a voz vinha «lá de baixo», do mesmo sítio de sempre!
Ao invés ali estava ele, aos trinta e cinco anos, morto. Sem nunca ter feito um filho, pelo menos que alguém proferisse, ou plantado uma árvore. Com o depósito do carro cheio, sem ser avisado que ia morrer a três dias do Natal. Com a dúvida se terão acabado os voluntários e agora têm que vir buscar candidatos à força. Se esta coisa da morte não terá livro de reclamações. Se quem decide estas coisas não vai de ferias. Se um morto terá direito a um advogado. Se pode uma pessoa estar morta, sem se lembrar de ter morrido. Se não existindo, pode um morto ter uma dúvida existencial, e com a compunção de nunca ter comido a vizinha do quinto esquerdo!

Talvez não valha a pena entrar em pânico, até porque ninguém sabe qual seria a cara de um morto em pânico.
O ideal é disfarçar com um sorriso. Não! Também não! Já está demasiado amarelo para um sorriso insuspeito.
- João, já acordaste?
É a mulher, a Ana. Ainda não vos tinha dito que o João tem uma mulher?! Pois tem, aquela com quem casou.
Até que a morte os separe! Recorda as palavras do Padre como se fosse hoje. Será que ele sabia de alguma coisa e nunca lhe disse nada?
Também nunca mais lá voltou, se o Padre soubesse, como é que lhe ia dizer?
Podia enviar um e-mail! Será que os Padres têm e-mail?
Que pensamentos estranhos aparecem com a morte: O arrependimento de não ter comido a vizinha do quinto esquerdo e se os Padres têm e-mail!
Nunca mais lá foi mas agora vai, a não ser que consiga disfarçar muito bem. Mas como é que se disfarça uma morte? Fazendo a barba? Ninguém acorda com a barba feita e a cheirar a after-shave.

Fechando os olhos? Assim pensavam que estava a dormir! Boa ideia! Mas teria de acordar. Raios!
Há políticos que fazem isto tão bem!
E o rádio de cabeceira que não se cala. O trânsito, o tempo. Para que quer um morto saber disso?
O trânsito para o Além interessa-o. Muito ou pouco congestionado? A menos que tenha havido um terramoto algures, é capaz de ser uma viagem calma!
Como é que se viaja para o além? Há setas e tabuletas a indicar? Não lhe deveriam ter já enviado o bilhete? Passe Social? Cartão de embarque com hora e data da partida? Qualquer coisa!
Os tempos de liceu, os bailes de finalistas, os cigarros às escondidas, as loucuras de uma vida, vem tudo à cabeça.
E talvez já tenha mesmo chegado a sua hora. Mesmo que diga que não, capaz de não alterar grande coisa!
Para quê fugir à realidade, afinal o seu maior medo era morrer e isso já está, sem dor, sem sofrimento. Foi tão ténue que até tentou levantar-se e só depois é que percebeu que já estava morto!

Tudo bem, desde que não houvesse autópsia ou doação de órgãos. O João sempre foi contra isso, tinha por convicção que o único órgão que se deve doar é o órgão sexual, mas é em vida.
Agora resta esperar que dêem conta! A Ana ainda está na cozinha a preparar o pequeno-almoço, sem saber de nada. Se soubesse não se daria ao trabalho e sempre se poupavam duas chávenas de café.
Será que alguém é capaz de beber café depois de descobrir que o marido morreu? Mais uma dúvida para juntar à dos Padres terem ou não e-mail, dos mortos terem os não direito a um advogado, de saber se quem decide estas coisas não deveria estar de férias, se pode uma pessoa estar morta, sem se lembrar de ter morrido? Se pode um morto ter uma dúvida existencial, de ter o DVD portátil como prenda este Natal e à eterna dúvida se seria ou não, a vizinha do quinto esquerdo boa na cama?

«Sempre se poupavam duas chávenas de café», depois de morto é que lhe deu para ser poupado! Vê-se mesmo que não sabe quanto é que custa um funeral. E ele com certeza não vai querer um qualquer. E quantas chávenas de café os seus amigos vão beber? E os inimigos? E os outros que nem o conheciam mas também bebem? Sim que isto de funerais é como os casamentos, no fim há sempre comida e tem a vantagem de não ser preciso convite nem prenda.
A Ana que nunca mais vem, a morte é um tédio, só deu conta que morreu à meia hora e já está farto.
Será que uma pessoa já morta, pode morrer de tédio?
Mais uma dúvida para juntar às outras que já o amofinavam.
Ah! Cá está ela, entrou de rompante em direcção ao quarto de banho, enquanto perguntava:
- Então! Não te levantas?
Saiu vinte minutos depois já pronta e com mais pressa que um Funcionário Público quando chegam as cinco horas.
Pegou na mala de viagem que puxava por uma trela como quem puxa um caniche que não quer voltar a casa depois de ter ido fazer as necessidades no passeio.

Antes de sair do quarto, olhou para o João como quem olha para uma criança que não quer acordar. Voltou atrás e escreveu um bilhete que colocou na mesa-de-cabeceira ao mesmo tempo que desligava o rádio, deu-lhe um beijo na testa, achou-o frio, puxou as mantas para o aquecer e saiu.
Deixou escritas as coisas que ele teria de levar para a Terra na véspera de natal. Ela seguia à frente porque ainda tinha que passar no Porto para promover o seu novo livro. A Ana é Professora e escreve muito sobre delinquência juvenil, uma espécie de Daniel Sampaio versão feminina.
O João sabia que ela ia mas esperava que desse conta antes de sair. Se em vez de um beijo, tivessem as esposas o hábito de tirar a pulsação aos maridos antes de sair de casa e não teríamos agora este silêncio mórbido!
O que é que um morto faz numa altura destas. Capaz de não haver grande vicissitude.
Adoraria poder deixar mensagens em todos os atendedores de chamadas de todos os amigos e a um ou outro desconhecido.
- Olá, fala o João. Só para dizer que estou morto. Feliz Natal!
Resolveu não rezar. Não por ser agnóstico, mas por achar que não iria alterar nada no seu estado. Rezar por um morto não é o mesmo que comprar um árbitro depois do jogo ter findado?
Raios! Já o irritavam estas dúvidas póstumas.

Só deram com o corpo três dias depois por causa do cheiro, a Ana teve de vir da Terra e não se comemorou o Natal esse ano. Os amigos apareceram, os conhecidos também e nesse dia ninguém falou mal do defunto, foi um funeral bonito, o João gostou! Pudera, estava lá a vizinha do quinto esquerdo!

In "Outros Contos de Natal", Comédia!

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